Pela desatenção técnica com que são comumente executadas as obras de terraplenagem (cortes/aterros) podem ser consideradas o “patinho feio” da Geotecnia brasileira. Salvo no caso grandes barragens de terra, onde fortes exigências técnicas estão já classicamente consagradas, a terraplenagem é costumeiramente considerada o serviço inicial “sujo” e tecnologicamente nada nobre, a ser realizado normalmente por terceiros, serviço ao qual não importa dar muita atenção, e com o qual não cabe ter muita preocupação além das prévias e burocráticas definições de alguns ângulos de talude e alguns critérios de compactação, quando muito. E quase sempre na prática deixado à responsabilidade de nossos destemidos e intrépidos operadores de maquinário pesado.
Resultado comum desse descaso são os variados problemas normalmente colhidos: prazos e custos estourados, serviços tecnicamente pessimamente conduzidos, presentes e futuros problemas com recalques de aterros, estabilidade de taludes, processos erosivos, assoreamento de drenagens, destruição de componentes de drenagem, de sistemas de proteção superficial e de serviços de infraestrutura, acidentes e incidentes com obras vizinhas, risco de multas e embargos por crimes ambientais, etc., etc.
Está mais do que em tempo da Geotecnia brasileira dar um basta na irresponsabilidade técnica com que vem sendo conduzidos os serviços de terraplenagem no país. A sociedade, os contratantes públicos e privados de obras, e a própria imagem tecnológica da Geotecnia nacional merecem e cobram esse esforço. Tem esse artigo a expectativa de dar alguma colaboração a esse objetivo.
Para uma boa e segura condução de serviços de terraplenagem há que se adotar um protocolo mínimo de ações que pode assim ser resumido:
1 - questionamento sobre a real necessidade da extensão da terraplenagem desejada
Antes de mais nada vale questionar a real necessidade da terraplenagem proposta ou, ao menos, sua extensão. Não possuímos no país uma cultura técnica arquitetônica e urbanística especialmente dirigida à ocupação de terrenos de declividades mais acentuadas. Isso se verifica tanto nas formas espontâneas e empíricas de autoconstrução utilizadas pela população de baixa renda, como também em empreendimentos empresariais privados ou públicos de grande porte. Em ambos os casos prevalece infelizmente a cultura técnica de produção obsessiva de áreas planas através de extensivas operações de terraplenagem. Nesse desatino geotécnicoambiental enormes taludes e aterros são gerados, morros são removidos para fundos de vale, sempre no simplório objetivo de adequar a natureza às disposições de projetos arquitetônicos preguiçosos e pouco inspirados.
Certamente, dentro do espírito de uma maior criatividade arquitetônica, uma preocupação de melhor adequação do projeto às condições locais de relevo resultará em reduções substanciais da terraplenagem necessária e, na mesma proporção, dos problemas a ela associados. Como um bom exemplo, um dos expedientes arquitetônicos que melhor se prestam a esse esforço criativo são as lajes armadas lançadas sobre pilotis. Ou lotes e empreendimentos com sua maior extensão longitudinal assentada paralelamente às curvas de nível.
2 – localização e compartimentação geotécnica das áreas de empréstimo.
Planejamento da movimentação de terra Pode-se dizer que essa ação é de primordial importância para obras de terraplenagem que envolvem cortes e aterros, e, por incrível que possa parecer, dentro das ações listadas, a mais comumente desconsiderada.
Como ponto de partida importante entender que os materiais naturais de corte não são homogêneos, apresentam sensíveis diferenciações em sua constituição geopedológica e em seu comportamento geotécnico em dependência de sua profundidade. Da mesma forma, um aterro constitui-se de diferentes setores, sendo que cada setor exige uma performance geotécnica diferenciada: núcleo, saias, camadas finais. Como suportará menores cargas as especificações técnicas destinadas às camadas componentes do núcleo do aterro poderão ser mais liberais, garantindo fundamentalmente que esse setor não sofra rupturas ou redução de volume (e no caso de barramentos, apresentem boa estanqueidade). Já no caso das camadas finais, que suportarão as cargas estáticas e/ou dinâmicas diretas impostas ao pavimento, as especificações técnicas são bem mais exigentes, garantindo, além da não redução de volume, que essas camadas não sofram deformações elásticas ou plásticas localizadas.
Combinar inteligentemente as relações entre os diferentes matérias de corte das áreas de empréstimo com seus diferentes destinos na constituição do aterro é o objetivo focal dessa ação.
Em nosso ambiente climático tropical e sub-tropical, à exceção de relevos serranos e ambientes áridos, os solos alcançam grande profundidade, normalmente na ordem de dezenas de metros. Os geólogos de engenharia e os agrônomos usam termos diferentes para classificar os diferentes estratos de solos. Os primeiros adotam a seguinte série para o que denominam de camadas: solo orgânico (camada superficial dessimétrica rica em matéria orgânica); solo superficial, solo laterizado ou solo residual maduro (camada bastante afetada pelo intemperismo e pelos processos de laterização e pedogênese, cuja espessura varia de 0,5 m a alguns metros, normalmente mais argilosa); solo residual jovem, saprolítico ou solo de alteração de rocha (camada de solo com minerais já em razoável estágio de alteração físicoquimica, mas que guarda várias feições herdadas da rocha original, com espessuras extremamente variáveis, desde poucos metros até dezenas de metros, geralmente de matriz silto-arenosa); finalmente, o saprolito propriamente dito ou rocha alterada mole/rocha alterada dura e a rocha sã. Já os agrônomos, que ao invés de camada usam o termo horizonte, classificam a mesma sequência com as seguintes denominações: horizonte A, horizonte B, horizonte C e rocha, agregando às propriedades descritas características próprias do comportamento agronômico destes solos.
As diferentes composições mineralógicas e granulométricas, como os diversos estágios de cimentação primária e secundária entre os grãos desses diferentes estratos de solo, definem suas diferentes características geotécnicas, pelo que responderão diversamente sob trabalhos de compactação. Prevalecem fortemente no contexto brasileiro as situações fisiográficas em que os solos superficiais laterizados, por seu melhor comportamento geotécnico sob compactação, devem ser reservados às camadas finais dos aterros. Os solos residuais jovens (solos saprolíticos), mesmo não respondendo tão bem frente à compactação, podem ser utilizados no núcleo do aterro. Por sua privilegiada condição agronômica, os solos orgânicos prestam-se à cobertura final das saias de aterro e superfícies de corte. Materiais do saprolito/rocha alterada, desde que facilmente escaváveis poderão ser aplicados no preparo das fundações dos aterros, na proteção posterior de faces de barramentos que estarão sujeitas ao embate de ondas (rip-rap), na composição de sistemas filtrantes subterrâneos, na execução de obras de contenção eventualmente necessárias.
Depreende-se, pois, a importância da primeira etapa do planejamento de uma obra de terraplenagem: a investigação dos diferentes tipos de solos e materiais presentes nas áreas de empréstimo, sua perfeita caracterização geotécnica enquanto material a ser utilizado na execução dos aterros, sua cubagem (determinação dos volumes disponíveis) e a programação de sua destinação final.
- Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas
- Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão” e “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”
- Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia