OS DESLIZAMENTOS TRANSLACIONAIS RASOS NATURAIS NAS ENCOSTAS DA SERRA DO MAR – DIAGNÓSTICO DO FENÔMENO

Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos

A imponente escarpa da Serra do Mar, responsável, por obséquio de sua topografia acidentada, pela conservação do pouco que nos resta da Mata Atlântica na região sudeste brasileira, cumpre uma espetacular função ambiental, determinante na equação climática regional. Claro, além de sua importância cênica, ecológica, turística, histórica e cultural. Essa escarpa serrana, que desde tempos pré-coloniais impõe uma enorme dificuldade de transposição para homens e cargas na ligação litoral-interior, tem origem tectônica por reativação da Falha de Santos, ocorrida ao final do Cretáceo, há cerca de 65 milhões de anos, a uma distância, mar adentro, de perto de 60 Km da atual orla litorânea do sudeste brasileiro. A escarpa ocupa sua atual posição geográfica fruto de um prolongado processo de regressão erosiva.
Preteritamente, desde o início do período Terciário, em ocasião de paleoclimas áridos com chuvas torrenciais, ambiente geológico em que a cobertura vegetal recolhia-se a pequenos refúgios (Aziz Ab’Saber), os solos então formados durante o clima quente/úmido, e então desprotegidos, eram lavrados violentamente por em eventos
pluviométricos intensos, conformando momentos geológicos de acelerada regressão geomorfológica da escarpa.
Em intervalos geológicos e climáticos quentes e úmidos, como o atual, quando estabelece-se o domínio pleno da floresta atlântica (floresta ombrófila densa), a regressão erosiva da escarpa da Serra do Mar desacelera-se, dando-se apenas restritamente como consequência de deslizamentos isolados em episódios de chuvas intensas, e, em maiores períodos de recorrência, por miríade de deslizamentos concomitantes em eventos de elevada pluviosidade concentrada. Em ambos os casos, obedecendo o mesmo padrão pluviométrico: alguns dias de chuvas ininterruptas (chuvas de saturação) culminados por um episódio pluviométrico de grande intensidade (chuva de deflagração). Mas, em termos de capacidade de movimentação de solos, na atual condição climática pode-se dizer que o processo mais radical de erosão regressiva da escarpa apresenta-se contido, latente, como conseqüência da espetacular proteção proporcionada pela floresta.


O principal tipo de movimento de massa natural nas encostas da Serra do Mar
O principal tipo de deslizamento natural na Serra do Mar, por sua distribuição e freqüência, é o translacional raso ou planar. 
Esses deslizamentos mobilizam quase que exclusivamente o horizonte superior de solos superficiais. Somente eu sua “raiz”, ou seja, no local de sua origem/início, há, eventualmente, mobilização de materiais do horizonte imediatamente inferior de solo de alteração de rocha, saprolítico. São os deslizamentos translacionais rasos, por sua grande área de distribuição e pela freqüência de ocorrência, aqueles que devem inspirar o maior cuidado para os empreendimentos humanos que se façam necessários na Serra do Mar. A Geologia de Engenharia brasileira proporcionou nas últimas décadas um considerável avanço da compreensão da dinâmica evolutiva desse tipo de deslizamento, atingindo o que se pode considerar um estágio avançado de conhecimentos, informando adequadamente, a todo tipo de atividade humana interessada, sobre onde, quando e como esses deslizamentos ocorrem.

Escorregamento Translacional Raso (ou Planar) típico. Local: Morros de Santos e São Vicente. Notar
a proximidade da “raiz” da crista do espigão e a pouca profundidade dos solos superficiais mobilizados.(Foto Arquivo IPT).

Aspectos que chamaram a atenção na observação dos deslizamentos translacional raso e que orientaram os estudos a respeito

  •  Sistemática proximidade da raiz (parte superior) do deslizamento da crista de
    espigões;
  • preferencialidade por encostas retilíneas;
  • probabilidade de ocorrência já a partir de declividades de 35o a 40o;
  • não existe uma superfície de ruptura nos moldes clássicos, o que há é um colapso dos parâmetros de resistência gerando uma condição de desmonte hidráulico.

Seções esquemáticas típicas dos deslizamentos translacionais rasos na Serra do Mar


A raiz constitui o “centro nervoso” do deslizamento. Aí, e só aí, acontecem os fenômenos hidráulicos e

geotécnicos que na verdade determinam o desenvolvimento ou não do fenômeno. A profundidade
alcançada na raiz é sempre superior àquela apresentada no corpo do escorregamento. Via de regra, na
raiz são também mobilizados materiais envolvendo o solo saprolítico. O corpo do escorregamento é
mobilizado pelo arraste promovido pelo material proveniente do “desmonte hidráulico” da raiz. Ou seja,
não há uma superfície de ruptura clássica entre o corpo do escorregamento e o maciço.

 


O deslizamento translacional raso é um dos únicos movimentos de massa naturais nas encostas da Serra
do Mar. Ou seja, pode ocorrer sem a intervenção do homem. O mapeamento de sua maior ou menor
incidência natural revela as zonas da Serra de maior ou menor instabilidade potencial. Hoje, sua
dinâmica, ou seja, o onde, o quando e o como ocorrem, está adiantadamente equacionada, o que,
juntamente com outros conhecimentos geotécnicos correlatos da Serra, proporciona informações suficientes
para que as obras de engenharia na Serra sejam corretamente projetadas e construídas, e, portanto,
coroadas de sucesso.


Imagens dos catastróficos eventos ocorridos no ano de 1967 em Caraguatatuba – SP (acima) e Serra

das Araras – RJ (abaixo), tragédias que levaram à morte mais de 2.000 brasileiros. Os fenômenos
típicos de eventos dessa escala de grandeza não constituem um tipo diferenciado de deslizamentos, mas
sim a conjunção de milhares de deslizamentos translacionais rasos (planares) naturais e induzidos, cuja
dinâmica é descrita adiante. Observar a constante proximidade das raízes dos deslizamentos das cristas
dos espigões. A confluência do material terroso, rochoso e vegetal resultante desses deslizamentos para
talvegues de vales provocaram várias corridas de detritos com enorme e trágico poder destrutivo. Foto
acima, Arquivo Nelson Infanti, foto abaixo, Geological Survey Professional Paper 697.

 

Diagnóstico. A Geologia de Engenharia diz onde, quando e como ocorrem os escorregamentos translacionais rasos na Serra do Mar

O ONDE — Os deslizamentos translacionais rasos são notadamente associados à faixa de terreno superior de encostas retilíneas com inclinações superiores a 35o e 40o encimadas por rupturas de declive positivas. O que coincide, via de regra, com a faixa de passagem da crista para as encostas dos espigões. Rupturas de declive referem-se a alterações sensíveis na inclinação topográfica dos terrenos. Podem ser positivas quando se passa de uma inclinação menor para uma inclinação maior, ou negativas, quando em uma seqüência inversa. Notar nas fotos que registram grandes eventos de escorregamentos na Serra do Mar a invariável proximidade das raízes desses escorregamentos da crista dos espigões.


O QUANDO — A ocorrência generalizada desses escorregamentos está comprovadamente relacionada a históricos pluviométricos caracterizados por prolongadas chuvas de saturação culminadas com episódios de alta pluviosidade concentrada, situação típica dos meses de verão. Ainda que a relação chuvas/deslizamentos seja específica de cada sub-região da Serra do Mar, pode-se ter como indicação geral que as probabilidades de ocorrência desse tipo de movimento de massa são reais e crescentes a partir de históricos pluviométricos caracterizados por episódios pontuais de chuvas maiores de 100 mm/dia antecedidos por 3 ou 4 dias de chuvas de saturação.


O COMO — A dinâmica desses escorregamentos é associada às trincas de tração e ao solo distendido altamente permeável normalmente ocorrentes em uma faixa de terreno de largura média em torno de 2 a 3 metros, paralela e próxima à linha de cumieira (crista) dos espigões, logo abaixo da ruptura positiva de declive aí presente. Essa faixa de terreno corresponde a uma zona de tração máxima promovida pelas diferenças de intensidade do rastejo dos solos superficiais a montante e a jusante da ruptura de declive (intensidade de rastejo quase nula no trecho convexo da crista do espigão e intensidade máxima de rastejo ao longo do trecho retilíneo da vertente que se desenvolve logo a seguir). Essas trincas e essa faixa de solo distendido de alta permeabilidade relativa, fatores ampliados quando de chuvas de saturação prolongadas, permitem, quando de episódios de alta pluviosidade concentrada, uma direta, volumosa e rápida penetração de água nos
horizontes dos solos superficiais e solos saprolíticos, com saturação completa e formação de bolsões instantâneos de água que, a depender da relação de esforços resistentes e atuantes, podem provocar um verdadeiro desmonte hidráulico na “raiz” do deslizamento. Por força das trincas de tração e do solo distendido de alta permeabilidade, os fenômenos hidráulicos/geotécnicos na “raiz” do deslizamento planar são totalmente diferenciados daqueles que ocorrem ao longo da extensão longitudinal jusante de todo o deslizamento, ou seja, enquanto na “raiz” há um desmonte hidráulico instantâneo, o material a jusante da raiz é mobilizado por arraste ou sobrecarregamento, mecanismos obviamente facilitados pelo estado geral de saturação dos solos superficiais nos episódios de chuva descritos, não se estabelecendo em nenhum momento uma superfície clássica e contínua de ruptura. A análise de uma cicatriz de um deslizamento translacional raso evidencia claramente essa observação, com a “raiz” via de regra apresentando uma profundidade maior que o corpo restante do escorregamento, inclusive com comum mobilização local de ao menos parte do horizonte de solo saprolítico.

Fotos mostrando o episódio de inúmeros deslizamentos translacionais rasos (planares) ocorridos em 1985nas encostas do vale do Rio Mogi. Esses deslizamentos estão relacionados ao início de fenecimento da
vegetação arbórea provocado pela poluição do Pólo Industrial de Cubatão. O fato comprova o efetivo
papel da vegetação na estabilidade das encostas, acrescendo-se que os escorregamentos foram
potencializados já a partir somente da perda de parte das copas da vegetação arbórea, uma vez que a
malha de enraizamento ainda estava totalmente preservada. Notar a invariável proximidade das raízes
dos escorregamentos das cristas dos espigões, mostrando sua nítida relação com a faixa de tração máxima
de solos (trincas e alta permeabilidade) situada logo abaixo da ruptura positiva de declive. (Foto
Arquivo IPT)

As corridas de detritos e os deslizamentos translacionais rasos – Em sua expressiva maior parte as corridas de detritos, eventos de maior poder destrutivo na Serra do Mar, ocorrem pela conjunção dos materiais (solo, rocha, água, restos vegetais) trazidos para o eixo de talvegue por inúmeros deslizamentos planares que ocorrem simultaneamente nas vertentes de vales serranos.

O nível d’água e os deslizamentos - O NA do lençol freático é normalmente profundo na escarpa da Serra do Mar, especialmente nas zonas das encostas onde se dão os deslizamentos translacionais rasos, não se associando nunca, portanto, à dinâmica desses fenômenos. De uma forma geral, no contexto da Serra, os horizontes inferiores drenam os horizontes superiores.


A floresta e os deslizamentos - A vegetação natural da Serra do Mar (Floresta Atlântica de Encostas — Floresta Ombrófila Densa) constitui o único, e espetacular, fator externo inibidor dos deslizamentos e de todas as formas de movimentação superficial dos terrenos, cumprindo esse papel por meio dos seguintes atributos:

  • impede a ação direta das gotas de chuva no solo através das copas e da serapilheira;
  • impede a ação erosiva das águas de chuva por meio de raízes superficiais e da serapilheira;
  • retém por molhamento de todo o edifício arbóreo parte da água da chuva que chegaria ao solo;
  • dilui no tempo o acesso das chuvas ao solo;
  • retira por absorção, e devolve à atmosfera por evapo-transpiração, parte da água infiltrada no solo;
  • agrega, “coesiona” e retém os solos superficiais através de uma formidável malha superficial e subsuperficial de raízes.

Imagem mostrando o aspecto extremamente denso da diversificada vegetação (notar as mais diferentes cores das copas arbóreas), com as copas formando um único e solidário corpo vegetal. A vegetação constitui o único, mas fantástico, fator externo de proteção das encostas contra escorregamentos.


O importantíssimo papel da floresta na contenção das encostas da Serra do Mar ficou nítida e didaticamente evidenciado por ocasião dos escorregamentos generalizados que ocorreram nas encostas do Vale do Rio Mogi no final do verão 1984/1985. Vide fotos acima. Como conseqüência da intensa poluição atmosférica gerada pelo pólo industrial de Cubatão, a floresta de porte arbóreo vinha sofrendo um acelerado processo de fenecimento ao longo desse vale. Sem mesmo ter sido iniciado o processo de apodrecimento das raízes, apenas o processo de desfolhamento do estrato arbóreo provocado pela poluição foi suficiente para a quebra do equilíbrio entre os agentes resistentes e os agentes promotores de deslizamentos.
Uma outra constatação demonstra a capacidade de proteção oferecida aos solos superficiais pela floresta. Mesmo em chuvas de grande intensidade, as águas das drenagens que correm da Serra para a Baixada permanecem cristalinas, sem nenhum turvamento que possa suscitar a remoção de solos por erosão.


A Engenharia Geotécnica e os deslizamentos translacionais rasos
Especialmente a partir de 1975, com os estudos de Morgenstern e Mattos, e mais adiante, de Wolle, Pedrosa, Abramento e Carvalho, os engenheiros geotécnicos dedicaram especial atenção ao equacionamento físico-matemático dos deslizamentos translacionais rasos naturais, associando-os, de uma forma geral, à perda de resistência, por eliminação da coesão aparente dos solos superficiais, como conseqüência da ação de frentes de saturação de fluxo vertical. Carvalho (Carvalho, C. S., 1989), em sua dissertação de mestrado, salienta a importância da condutividade hidráulica dos solos superficiais como fator essencial na dinâmica dos deslizamentos translacionais: “Dada a heterogeneidade característica dos solos coluvionares superficiais da Serra do Mar, os esforços nesse sentido (aperfeiçoamentos na metodologia utilizada para a determinação da condutividade hidráulica saturada na velocidade de infiltração) devem direcionar-se para a definição de ensaios, de campo e laboratório, que permitam reproduzir mais fielmente as condições prevalecentes na natureza, e para a utilização, na análise da estabilidade de taludes, de modelos que incorporem a variação espacial da condutividade hidráulica na área em estudo.”
Vale lembrar o registro do engenheiro Costa Nunes, em 1969, sobre o evento catastrófico da Serra das Araras ocorrido no ano de 1966 (jan./fev.): “a chuva torrencial demoliu hidraulicamente a cobertura de solo das encostas... mantos de alteração deslizaram pela encosta abaixo num estado de liquefação completa do solo.”


Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

  • Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas
  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
  • Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia

 

Referência bibliográfica: “A GRANDE BARREIRA DA SERRA DO MAR: DA TRILHA DOS TUPINIQUINS À
RODOVIA DOS IMIGRANTES” – Livro. Editora O Nome da Rosa – São Paulo 2004 - 2a Edição – 2023 - livre acesso em http://www.arsgeologia.com.br/

 

 

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