Apesar dos grandes recursos financeiros já investidos em obras e serviços de infraestrutura hidráulica, como ampliação das calhas e desassoreamento de seus grandes rios, a dura realidade vem mostrando que um enorme número de médias e grandes cidades brasileiras estão cada vez mais vulneráveis a episódios de enchentes. Há uma explicação elementar para tanto: resistindo a admitir o total fracasso do modelo adotado para o enfrentamento do problema, todas essas cidades continuam a cometer os mesmos erros básicos que estão na origem causal das enchentes urbanas.
Relembremos a equação básica das enchentes urbanas: “volumes crescentemente maiores de águas pluviais, em tempos sucessivamente menores, sendo escoados para drenagens naturais e construídas progressivamente incapazes de lhes dar vazão”.
Ou seja, a cidade, por força de sua impermeabilização, perde a capacidade de reter as águas de chuva, lançando-as em grande volume e instantaneamente sobre um sistema de
drenagem – valetas, galerias, canais, bueiros, córregos, rios – não dimensionado para tal desempenho. E aí, as enchentes. Ao menos em seu tipo mais comum.
Excessiva canalização de córregos e o enorme assoreamento de todo o sistema de drenagem por sedimentos oriundos de processos erosivos e por toda ordem de entulhos de construção civil e lixo urbano compõem fatores adicionais que contribuem para lançar as cidades a níveis críticos de dramaticidade no que ser refere aos danos humanos e materiais associados aos fenômenos de enchentes. E, lamentável e inexplicavelmente, as cidades continuam a cometer todos esses erros.
Da equação hidráulica enunciada decorrem duas linhas básicas e lógicas de ação para a redução das enchentes urbanas: a primeira, voltada a aumentar a capacidade de vazão de toda a rede de drenagem, a segunda, voltada a recuperar a capacidade da cidade reter uma boa parte de suas águas pluviais, reduzindo assim o volume dessas águas que é lançado sobre as drenagens.
Muitas cidades, a exemplo de São Paulo, tem quase exclusivamente atuado na primeira linha básica de ação, ou seja, procurado aumentar a capacidade de vazão de córregos e rios principais através de obras e serviços de engenharia, a um custo extraordinário e com resultados altamente comprometidos pelo violento processo de assoreamento a que todo esse sistema de drenagem continua sendo submetido. Infelizmente, ainda dentro dessa primeira linha de ação, praticamente nada se faz no que conta à indispensabilidade de atualização/readequação hidráulica da velha rede de drenagem já instalada, ou seja, canais, galerias, bueiros, etc.
Quanto à segunda linha de ação, ou seja, a recuperação da capacidade do espaço urbano em reter águas de chuva, priorizou-se a construção dos malfadados e dispendiosos piscinões, uma obra que por suas terríveis contra-indicações urbanísticas, pois que na prática constitui um verdadeiro atentado urbanístico, financeiro, sanitário e ambiental, deveria ser a última das últimas alternativas a ser pensada.
No entanto, com esse mesmo objetivo de retenção máxima de águas de chuva, e sem as contra-indicações dos piscinões, há um enorme elenco de medidas, virtuosamente utilizadas em vários países, que sequer foram consideradas, apesar das insistentes cobranças do meio técnico: reservatórios domésticos e empresariais para acumulação e infiltração de águas de chuva, calçadas e sarjetas drenantes, pátios e estacionamentos drenantes, valetas, trincheiras e poços drenantes, multiplicação dos bosques florestados por todo o espaço urbano, etc. São as chamadas medidas não estruturais, que uma vez aliadas a um vigoroso combate aos processos erosivos e a uma radical coibição do lançamento irregular de lixo urbano e entulho da construção civil, constituem providência indispensável para o sucesso de qualquer programa de combate às enchentes. E mesmo que isoladamente não suficientes para a eliminação total do problema, terão a propriedade de reduzir drasticamente a quantidade, as dimensões e os custos das medidas estruturais de aumento de vazão que ainda se façam necessárias.
Vale registrar que a infiltração é normalmente um processo lento e os expedientes de retenção não podem depender apenas dela para cumprirem seu papel. No combate às inundações ou se retém de imediato as águas de um forte episódio pluviométrico, ou os efeitos hidrológicos serão mínimos. Para tanto, todos os sistemas de maior retenção devem especialmente cumprir a função primeira de acumulação. Será esse volume imediatamente acumulado que irá aliviar o sistema público de drenagem urbana de um determinado volume de água. Obviamente, a infiltração interessa, mas por outro motivo, para a alimentação do sacrificado lençol freático das áreas urbanizadas.
Um exemplo: um estacionamento a céu aberto com piso permeável deverá ser projetado de forma a permitir a acumulação de água em uma base porosa (p.e. brita) de algo como
0,5m de espessura. Imaginando um estacionamento de 5 mil m² será essa base porosa que propiciará a acumulação de algo como 2 mil m³ de águas pluviais. Que, passada a
chuva, irão então lentamente infiltrando-se no solo. Da mesma forma devem ser concebidos os reservatórios prediais.
No caso dos bosques florestados, nossos “piscinões verdes”, um dos melhores expedientes para a retenção de águas de chuva na área urbana, essa retenção também não se dá por uma imediata infiltração, mas pelo encharcamento de todo o corpo florestal: copas, galharia, epífitas, lianas, serapilheira e o horizonte A orgânico do solo (esse extremamente poroso). É dessa maneira que as florestas conseguem reter de imediato até 85% das águas de um episódio pluviométrico significativo.
Clique para baixar: ENCHENTES URBANAS - DO DIAGNÓSTICO À SOLUÇÃO.pdf
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (
Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas
Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da
Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e
Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia